O avanço galopante de um projeto de lei antidemocrático

Aprovado no último dia 16 de setembro, por comissão especial[1] formada na Câmara dos Deputados, o relatório do projeto de lei proposto para ações contraterroristas (PL 1595/2019) merece destaque sobre seu conteúdo genérico e potencialmente ofensivo às garantias constitucionais.

O projeto de lei, de origem da base governista, visa instituir comandos administrativos para a criação do Sistema Nacional Contraterrorista que, desconsiderando a existência de lei que já institui medidas suficientes de combate ao terror (Lei nº 13.260/2016), cria dispositivos legais capazes de aumentar a abrangência do significado legal de “terrorismo”, bem como de instituir eventos de exceção.

É de especial relevo a potencialidade da combinação do art. 1º, §2º – que conceitua de forma vaga a definição de atos terroristas, com demais dispositivos do projeto de lei, sobretudo quando olhamos especificamente para os arts. 3º, 13º e 19º, que juntos permitem a infiltração de agentes em atividades consideradas terroristas, excludente de ilicitude para uso mortal da força contraterrorista e ativação de força policial de exceção.

A respeito dessas combinações de artigos, a possibilidade de perseguição e violência contra organizações civis e movimentos sociais, ou mesmo de grandes manifestações que podem não se alinhar com os comandos legais das autoridades responsáveis pelo projeto de lei, pode ser vista como preocupante, pois, somada ao cenário atual de incertezas políticas e tensão democrática, o escopo do projeto de lei pode, de encontro às diretrizes constitucionais, proporcionar ao líder do Executivo um aparato de contenção e reação ideológica.

Esta preocupação aventada e muito alarmada por entidades civis – incluindo a própria Organização das Nações Unidas – não pode ser ignorada, pois já testemunhamos o Presidente da República chamar manifestantes em atos pró-democracia de “terroristas”.

Fato é que, a ausência de um conceito bem definido acerca de “atos terroristas”, agrava a possibilidade de abusos relacionados aos direitos humanos e, no caso específico do PL 1595/2019, um dos pontos atacados seria o direito de manifestação.

Referido direito pode ser encontrado na interdependência de específicos direitos civis e políticos; aqui, nos referimos à liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de associação e liberdade de reunião. A garantia de qualquer um destes direitos fundamentais é necessária para a satisfação do outro. Não há como, por exemplo, se ter liberdade de reunião e, ao mesmo tempo, não se ter a liberdade de ali se expressar e opinar livremente.

Todos estes direitos estão previstos na Declaração Universal de Direitos Humanos (artigos 18º a 20º), inclusive, em uma sequência lógica, demonstrando a correlação entre todos estes direitos.

Tem-se que ter em mente que o Brasil é signatário da Declaração Universal de Direitos Humanos, bem como de outros tratados internacionais e regionais que garantem o respeito a esses direitos fundamentais. À título de ilustração nos referimos ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/1992), o qual prevê a liberdade de pensamento em seu art. 18, liberdade de expressão em seu art. 19, liberdade de reunião em seu art. 21 e a liberdade de associação em seu art. 22.

No direito nacional, mencionados direitos estão previstos na Constituição Federal de 1988, em específicos incisos do art. 5º, que, por sua vez, dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais. São eles: art. 5º, inciso IV (liberdade de pensamento), art. 5º, inciso IX (liberdade de expressão), art. 5º, inciso XVI (liberdade de reunião) e art. 5º, inciso XVII (liberdade de associação).

Esses direitos são fundamentais dentro de uma sociedade democrática e, apesar de passíveis de certas limitações, o PL 1595/2019 está os ameaçando diretamente, tornando visíveis os seus prováveis efeitos práticos, a ponto de não ser possível identificar o grau de intervenção estatal pretendido.

O problema da ampliação legislativa vai além, pois existe um aspecto dúbio e inexato do projeto de lei: sua complexidade temática com uma generalidade teórica e prática. Da combustão resultante desses aspectos derivauma facilitação do Estado em flexibilizar direitos e garantias constitucionais, mesmo sem uma análise prévia dos interesses (coletivos) e as devidas ponderações.

O projeto aprovado pela comissão especial da Câmara pretende ampliar o elemento “ato terrorista” e não vinculá-lo a nenhuma premissa teórica; não haveria, na intenção legislativa, algo que diferenciasse um “ato terrorista” de um crime comum, já que as elementares necessárias são genéricas – perigo para a vida humanaafetação de políticas públicas e aparente intenção.

Relatórios[2] elaborados por movimentos ligados à proteção dos direitos humanos para a Lei nº 13.260/2016 (Lei “Antiterrorismo”) e outros[3] atinentes ao novo projeto (Lei “Contraterrorismo”) apontam para os riscos da excessiva abrangência das previsões teóricas de normas jurídicas vagas que outorgam às autoridades estatais – que já contam com alto grau de politização – faculdades discricionárias incompatíveis com o direito de reunião, de associação e às diversas formas de liberdade de expressão.

A inobservância de princípios básicos do direito penal como o da legalidade ou taxatividade, que determinam a elaboração de leis com definições precisas e cristalinas das condutas proibidas, distribui às autoridades essa função que não lhes cabe. Em tese, o mesmo princípio representa a garantia política de que nenhuma pessoa poderá ser submetida ao poder punitivo estatal senão com base em leis formais que sejam fruto do consenso democrático.

Utilizá-la para distribuir poderes irrestritos aos agentes públicos e criminalizar atos políticos organizados contra a própria sociedade civil não fazem parte de um consenso democrático.


CAIO LENHARO MAKHOUL – Advogado. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico – FGV Law. Membro de Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB – SP.
HUGO MACIEL – Advogado. Pós-Graduado em Direito e Processo Penal – Universidade Presbiteriana Mackenzie.
LÍGIA LAZZARINI MONACO – Advogada. Masters of Law em Direito Público Internacional com especialização em Direito Criminal Internacional – Universidade de Leiden. Especialista em Direito Penal e Processo Penal – PUC/SP.


[1] Comissão temporária instituída para emissão de parecer de matéria competente às comissões Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN), de Finanças e Tributação (CFT), de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).

[2] Disponíveis em: https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/docs/publicaciones/20140519%20-%20PORT%20Unesco%20-%20Marco%20Juridico%20Interamericano%20sobre%20el%20Derecho%20a%20la%20Libertad%20de%20Expresion%20adjust.pdf e https://brasil.un.org/pt-br/71279-brasil-relatores-da-onu-alertam-que-lei-antiterrorismo-e-muito-ampla-e-pode-restringir

[3] Disponível em: https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2021/09/Nota-Tecnica-1595-2019.Ago_.05-1-1.pdf

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