Indiciamento: o ato privativo da autoridade policial como instrumento político-social

A Lei nº 12.830, de 2013, dispôs sobre as investigações criminais conduzidas por autoridade policial; em especial, estabeleceu diretrizes — ainda que básicas — para o indiciamento formal, sendo um “ato privativo do delegado de polícia” o qual deverá ser “fundamentado e mediante análise técnico-jurídica do fato indicará autoria, materialidade e suas circunstâncias” (artigo 2º, §6º, do texto de lei).

Ainda que se entenda por um ato privativo, não é o mesmo que se interpretar como uma mera arbitrariedade da autoridade policial. Sérgio Moraes Pitombo [1] bem indicou: “Indiciar alguém, como parece claro, não deve surgir qual ato arbitrário, ou de tarifa, da autoridade, mas, sempre legítimo. Não se funda, também, no uso do poder discricionário, visto que inexiste, tecnicamente, a possibilidade legal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidade estrita do ato. O suspeito, sobre o qual se reuniu prova da infração, tem que ser indiciado. Já aquele que, contra si, possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito”.

De igual importância, Aury Lopes Jr. [2] indica que o ato representa o início dos direitos do sujeito passivo, já que “marca o nascimento de direitos, entre eles o de defesa, é fundamental definir o momento em que deve ocorrer, pois também é uma garantia para o sujeito passivo”. Trata-se de um marco temporal do exercício de defesa.

Mesmo depois da inovação legislativa, as dúvidas sobre o procedimento permanecem. Talvez por esse motivo, são muitos os possíveis motivos (ou circunstâncias) por trás do indiciamento de quem antes era investigado: transformar a possibilidade em probabilidade da prática delitiva, fortalecer o relatório final a ser analisado pelo Ministério Público para eventual denúncia ou, o que parece ser uma opção menos técnico-jurídica, transformá-lo em um instrumento político-social.

São muitos os exemplos de textos jornalísticos que fazem questão de consignar que o ato privativo da autoridade policial foi exercido e aquele alguém foi indiciado, quase como uma forma de reafirmar o exercício social de justiça e a avaliação política dos agentes públicos.

A exemplo disso, o relatório final [3] da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, votado e aprovado nesta semana, com intuito de “atender ao interesse público e a atuação em conformidade com a lei”, procedeu com diversos indiciamentos. Lê-se no trecho do relatório a correlação de atuação da autoridade policial com a função da própria comissão: “À semelhança do que ocorre no processo penal, havendo indícios de autoria e materialidade da prática de crime, ainda que paire alguma dúvida no bojo da apuração realizada, esta CPI deve privilegiar o interesse público, no caso, da sociedade (in dubio pro societate). Isso porque estamos falando de investigação parlamentar que, dentre outras finalidades, se presta a subsidiar as autoridades persecutórias competentes, para, se for o caso, dar início a uma persecução penal”.

Apesar do indiciamento permanecer com uma lacuna jurídica procedimental, parece ter encontrado uma nova função: a de fomentar uma articulação da sociedade contra arbitrariedades que constituem crimes no ordenamento nacional; nesse caso em específico, a de fomentar uma articulação da sociedade contra arbitrariedades de agentes políticos, particulares e empresas e submetê-los ao conceito de prováveis responsáveis pela má condução da pandemia.

Sabe-se que o ato não vincula os órgãos de persecução penal à eventual denúncia, mas também é de conhecimento comum a influência desfavorável do ato de ser indiciado no contexto de uma investigação criminal (ou de uma comissão parlamentar). Ignorar ou relativizar por completo o feixe de indícios convergentes em uma situação de um (necessário) bombardeio midiático, envolvendo a dinâmica política atual, seria igualmente irresponsável por qualquer um que receba aquele ato (privativo) “supervalorizado” em seus próprios termos.

Restou bem evidente que referido ato, mesmo que sem um propósito justificado, carrega consequências personalíssimas. Nas palavras de Sylvia Steiner [4], “o indiciamento formal tem consequências que vão muito além do eventual abalo moral que pudessem vir a sofrer os investigados, eis que estes terão o registro do indiciamento nos Institutos de Identificação, tornando assim público o ato de investigação. Sempre com a devida vênia, não nos parece que a inserção de ocorrências nas folhas de antecedentes comumente solicitadas para a prática dos mais diversos atos da vida civil seja fato irrelevante. E o chamado abalo moral diz, à evidência, com o ferimento à dignidade daquele que, a partir do indiciamento, está sujeito à publicidade do ato”.

Como toda lei, seja de caráter material ou processual, inobservar preceitos básicos de legalidade ou taxatividade dá espaço ao manuseio irrestrito de determinado tema. Dessa vez, o ato privativo da autoridade policial, em grande parte, por ausência de maiores previsões e diretrizes, ganha cada vez mais peso como moeda de troca entre os participantes do processo penal e os espectadores que aguardam um “resultado justo”.

Enquanto a legislação processual não avança, o procedimento encontrou um novo espectro, menos jurídico e mais social, para influenciar (ou não) a persecução penal.


[1] PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. O indiciamento como ato de polícia judiciária. Revista dos Tribunais, n. 577.

[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17ª ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 291.

[3] Disponível em: relatorio-final-cpi-covid.pdf (conjur.com.br). Acesso em 26.out.2021.

[4] STEINER, Sylvia. O indiciamento em inquérito policial como ato de constrangimento — legal ou ilegal. Revista Brasileira de Ciência Criminais, v. 24, 1998, p. 307.

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