Genivaldo de Jesus: a face da necropolítica

No último dia 25 de maio, Genivaldo de Jesus dos Santos foi morto por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Após ser agredido por minutos, segundo relatos de testemunhas, ele foi violentamente colocado dentro do porta-malas de uma viatura. Em seguida, os policiais atiraram uma bomba de gás lacrimogêneo e spray de pimenta dentro do veículo, o que provocou sua morte por asfixia. Toda a ação foi motivada, a princípio, porque Genivaldo não estaria utilizando capacete ao trafegar com sua motocicleta.

O cenário é bizarro e tenebroso – no entanto, não é incomum. Por trás de cada episódio semelhante, em que mortes ocorrem por ações truculentas da força estatal, existe um fator implícito: a ausência de direitos e garantias dos corpos marginalizados.

Em “Necropolítica”, Achille Mbembe descreve o uso do “estado de exceção” pelas instituições de poder a fim de legitimar a base normativa do direito de matar[1]; cria-se um inimigo ficcional a ser combatido a todo custo — tornando-o retrato do culpado pelo estado de insegurança rotineiramente alarmado pelos veículos de informação —, para que, assim, o aparato de poder possa utilizar sua força máxima com o propósito de reprimir aquele que já não é mais considerado cidadão.

Em um Estado com diversos problemas relacionados ao racismo, machismo e homofobia, é ainda mais significativa a construção deste inimigo para que, disfarçado de combate à insegurança, o poder possa legitimar o extermínio de parte da população, perpetuando de maneira “implícita” a não aceitação de determinados corpos na sociedade.

Vila Cruzeiro e Jacarezinho são exemplos recentes do uso desmedido e despreparado da força policial em uma constante guerra às drogas, que causa danos diretos à parcela marginalizada da sociedade. Somadas, as operações foram responsáveis pela morte de 51 pessoas, entre as quais estão civis alheios ao confronto polícia vs. facções. Nestes casos, é alarmante que, assim como ocorreu com o episódio de Genivaldo, o chefe do Poder Executivo federal e do Governo do Rio de Janeiro se mostrem despreocupados com os “danos colaterais” do conflito, a ponto de exaltar tais ações e tachar as vítimas — sem distinção — de “vagabundos”.

Verifica-se, a partir dessas questões, que a perpetuação da violência contra determinada parcela da população é, portanto, uma forma de torná-la algo cotidiano para a massa populacional, banalizando o uso da força e acuando determinados sujeitos através da extrema repressão exercida, em regra, pelo braço mais distante das ramificações de poder, representado pela polícia.

Para Achille Mbembe a vida destas pessoas “[…] é uma espécie de vida cujo valor está fora da economia, correspondendo apenas ao tipo de morte que se lhe inflige”[2].

O problema é que a morte incontestada desses “inimigos” do Estado leva à perpetuação do poder necropolítico, multiplicando-o a ponto de produzir pequenos massacres do dia a dia. É assim com o jovem que foi amarrado em um poste e linchado, também com Gabrielle Ferreira da Cunha, morta na operação da Vila Cruzeiro, e como ocorreu com o fuzilamento do carro de um civil alheio a qualquer conflito “polícia-bandido”. Por mais que esses casos tenham obtido repercussão, não se tornaram exemplos para frear a máquina violenta; ao contrário, parece que deram certa legitimidade a ela na medida em que esses episódios foram esquecidos e superados.

Parece simplório afirmar, ao lado de Foucault[3], que esse massacre chancelado pelo combate ao inimigo social seja uma forma de controle social, mas ao mesmo tempo é impossível dissociar sua afirmação acerca de delinquência deste tema. Ao julgo do autor, o delinquente é estritamente necessário ao controle de poder, pois sem ele não há polícia, e sem polícia não há controle aceito pelo medo causado acerca da existência desses infratores; logo, conclui-se que sem este “inimigo” as engrenagens sistêmicas não se lubrificam, deixando de funcionar conforme o interesse da classe dominante.

De toda forma, esse controle pela violência não pode ser aceito pacificamente na sociedade. É necessário todo um sistema de convencimento para que grande parcela da população esteja alinhada com essa repressão e a limitação de seus direitos. Para Foucault[4], esse “poder” é mantido através de mecanismos sutis responsáveis pela criação de “aparelhos de saber”. O retrato de um inimigo, o alarde sobre a violência cotidiana e a sensação contínua de insegurança, perfazem, por exemplo, a função de tais mecanismos.

Estes dispositivos permitiram que uma guarnição de agentes rodoviários federais pudesse — sem que quaisquer dos oficiais contestasse a forma de agir — matar um cidadão através de asfixia no porta-malas de uma viatura; o signo que esse cidadão representa, não nos deixa pensar sobre o motivo do método empregado, afinal, caso não fosse ele o estereótipo do inimigo fabricado pelo sistema, que atitude os policiais teriam na mesma situação?

É sintomático, ainda, que a Polícia Rodoviária Federal — semanas antes do acontecido — tenha, por intermédio do seu diretor-geral, revogado o funcionamento e as competências das comissões de direitos humanos da corporação.

Casos como o de Genivaldo e das operações policiais em favelas do Rio de Janeiro não são fatalidades, são estatísticas pré-ordenadas em um sistema de poder violento e avesso aos corpos que este mesmo sistema marginalizou e afastou do seu seio de garantias.

Urge uma discussão científica-criminológica sobre a questão. Afinal, devemos nos atentar à moderna teoria criminológica, do ponto de vista crítico ao sistema pré-estabelecido como sugere Juarez Cirino dos Santos[5] ou mantermos a ideia arcaica de um inimigo estereotipado como sugeriu Lombroso?

Com a proximidade das eleições, essas questões têm de estar em mente. A perpetuação do poder necropolítico por um governo que exalta operações policiais que acarretam mortes de civis e trata com banalidade casos como o de Genivaldo não pode ser aceita. Estes episódios devem sempre permanecer no nosso imaginário, tanto quando decidimos quem deve nos representar, quanto quando apuramos com qual ideal nós simpatizamos – o extermínio ou a renovação.


[1]MEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 17

[2]MEMBE, Achille. Política das Inimizades. Lisboa: Antígona, 2017. p. 65

[3] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017. p. 225.

[4] Idem.

[5] Vide: SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical; SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia: Contribuição para Crítica da Economia da Punição; SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia da Repressão: crítica à criminologia positivista.

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