“CPI das Pirâmides Financeiras” e novos aspectos legais dos criptoativos

Motivada pelos crescentes prejuízos suportados pelas pessoas atraídas por intermediadores que prometiam alta lucratividade no mercado cripto, a Comissão Parlamentar de Inquérito das “Pirâmides Financeiras”, instalada em 13 de junho, após requerimento apresentado pelo deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), poderá cooptar elementos relevantes que, aliados aos dispositivos legais vigentes à época dos fatos e ao novo marco regulatório, poderão aclarar ainda mais a complexidade do tema.

Ao menos oito empresas que tiveram suas atividades suspensas por deliberações emitidas pela CVM são foco das atividades a serem desenvolvidas pela CPI; além destas, também são explicitamente nominadas no requerimento a GAS Consultoria e a 18kRonaldinho.

Com o início dos trabalhos, Glaidson Acácio dos Santos, sócio fundador da GAS Consultoria, foi ouvido na qualidade de investigado pela CPI. Ao longo de toda sua oitiva, não obstante a mudança de entendimento da CVM [1] acerca das operações de sua empresa, Glaidson defendeu a regularidade de suas atividades empresariais, notadamente aquelas relacionadas à “terceirização de trading” no mercado cripto. No entanto, a alta lucratividade prometida nos contratos (10% ao mês), sem exposição de riscos, foi duramente criticada pelo deputado Zé Haroldo Cathedral (PSD-RR) em especial devido a relutância de Glaidson em esclarecer qual estratégia operacional seria aplicada aos ativos para proporcionar tamanho ganho sem a possibilidade perdas.

De fato, a oferta de investimento em ativo atrelado a um ecossistema extremamente volátil [2], com a exclusão do risco-mercado, merece atenção; pois, ainda que a melhor estratégia seja aplicada, alguma exposição a taxa de riscos deve existir, já que a possibilidade de rentabilidade está ligada justamente aos parâmetros voláteis do ativo.

Por isso, mesmo que as estratégias mais arrojadas como a arbitragem com o uso de algoritmos [3], o staking [4]e os liquid pools [5]sejam operadas, estas, apesar de mitigarem os riscos de alguma forma, não tornam este tipo de investimento alheio a perdas.

Outrossim, ainda que a oportunidade oferecida não esteja ligada a uma operação inovadora, mas sim a um grau menor de volatilidade, a exemplo dos ativos denominados stablecoins [6]securtiry tokens [7], o risco não escapa à realidade do investimento, especialmente por esses criptos terem como lastro ativos que também expostos à volatilidade.

O alerta é providencial, justamente pelo motivo de que as promessas de alto rendimento sem qualquer risco se mostram equiparáveis a formas de captação de recursos para, em prejuízo dos investidores, possibilitar ganhos ilícitos aos arquitetos dos esquemas que, via de regra, não se sustentam frente a requisições de retirada abruptas motivadas, por exemplo, pela volatilidade do ativo [8].

Neste cenário, a Lei 14.478/2022 e o Decreto nº 11.563/2023 — o qual a regulamenta — representam um marco regulatório no país e, para além disso, inovam em matéria penal. A título de exemplo, cita-se o novo crime previsto no artigo 171-A do Código Penal e a possibilidade de aplicação do artigo 5º da Lei 7.492/1976 a fatos futuros que possam se assemelhar aos apurados pela CPI.

A “facilitação” na tipificação penal, apesar de aberta a eventuais críticas, poderá se provar um meio eficiente de mitigar os danos causados pelas práticas ilícitas, sobretudo quanto aos meios para recuperação de patrimônio, que ainda se mostram mais eficientes quando os comparamos às outras esferas do direito, notadamente porque:

“Quando os ativos digitais estão em carteira, não há quem consultar para saber quanto uma pessoa tem guardado. Mesmo que, por alguma outra razão, seja possível saber quantas e quais criptomoedas alguém possui em carteira (descobrindo o endereço, por exemplo), não haverá quem oficiar para solicitar bloqueio de tais valores. Isso ocorre porque na verdade os criptoativos estão na Blockchain, cuja descentralização já foi anteriormente explicada. No juízo criminal, em função da possibilidade de quebra de sigilo de dados telemáticos (para acesso à nuvem de dados) e contando com uma polícia que entenda o que são criptoativos e saiba a forma de identificá-los, rastreá-los e apreendê-los, a apreensão de criptoativos em carteira, e consequentemente sua penhora, é um pouco menos difícil.” [9]

No caráter preventivo, o dever de prestar informações detalhadas sobre todas as operações relacionadas aos criptoativos, o qual é sedimentado pela IN RFB 1.888/2019 [10] e válido às empresas que oferecem serviços referentes a operações com ativos virtuais — agora equiparadas às instituições financeiras — e pessoas físicas, também se mostra importante instrumento à temática.

Isto porque, a edição da norma em questão tem fundamento o Código Tributário Nacional que, no âmbito da outorga constitucional, a qual, faculta à Administração Tributária, para cumprimento da determinação constitucional, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, estabeleceu, em seu artigo 113 do CTN, ao contribuinte o dever de realizar prestações, positivas ou negativas, previstas na legislação tributária, no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, a fim de possibilitar à autoridade administrativa tributária a investigação e o controle do recolhimento de tributos (obrigação principal) a que o próprio sujeito passivo da obrigação acessória, ou outra pessoa, esteja, ou possa estar, submetido.

Igualmente, o artigo 197 [11] da mesma norma jurídica dispõe sobre a possibilidade de a autoridade administrativa tributária obter das pessoas arroladas nos incisos do referido dispositivo legal, mediante intimação, informações sobre terceiros.

Ocorre que, apesar de estar inserido dentro de um contexto fiscalizatório por parte da Receita Federal, cumpre destacar que o artigo 198 do mesmo dispositivo legal permite o intercâmbio das informações, mediante instauração de processo administrativo, diante de solicitações judiciais e administrativas no interesse da Administração Pública.

Contudo, a despeito da possibilidade de compartilhamento dessas informações, o dispositivo parece deslembrado para fins de eventual atuação do Poder Público no sentido de investigar práticas ilícitas cometidas por empresas de serviços financeiros na gestão de criptomoedas.

Não obstante às inovações, é notória a necessidade de nos voltarmos para os aspectos mais iniciais da questão, haja vista que a diversidade de criptoativos ainda é um desafio à legislação, principalmente quando olhamos para a difícil tarefa de caracterizá-los, conforme o teor do exposto pela CVM em ofício circular e Deliberações passadas, que se mostram ótimos exemplos [12] da mutabilidade do ativo a partir de certas circunstâncias.

A classificação destas expressões de valor é, deste modo, importantíssima, uma vez que pela composição legal atual a competência para regular, autorizar e supervisionar a prestação de serviços dependerá intrinsicamente da natureza a ser conferida ao criptoativo enquanto valor mobiliário ou não [13], sujeitando-o à CVM ou ao Bacen respectivamente.

Vê-se que a complexidade natural do tema e a extensa lista de termos para compreensão exata desse ecossistema econômico demonstram a necessidade de discussão pública acerca do tema. Por isso, é bem-vinda a convocação de especialistas feita pela CPI para que, publicamente, o tema possa ser tratado ainda que por um viés delimitado pelo objeto da Comissão Parlamentar.

Afinal, é necessário e improrrogável aproveitar a oportunidade lançada pela instalação da CPI, não só para garantir maiores esclarecimentos acerca da sistemática das fraudes apuradas e das possibilidades de ressarcimento do prejuízo suportado pelas vítimas — como bem destacou o deputado Julio Lopes (PP-RJ) —, mas também para que o tema seja discutido para o futuro, abordando as necessidades que ele apresenta.

Referências
[1] Processo sancionador – CVM nº 19957.002835/2022-47.

[2] https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2022/12/30/bitcoin-chega-ao-ltimo-dia-til-de-2022-com-perda-de-665-pontos-percentuais-no-ano.ghtml

[3] (LECH, Tatiane Praxedes; DA SILVA, Fabio Pereira [et all]Criptoativos – Estudos Regulatórios e Tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 135)

[4] (COSTA, Isac [et all]Criptoativos – Estudos Regulatórios e Tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 623)

[5] (GUEIROS, Solange [et all]. Criptoativos, Tokenização, Blockchain e Metaverso: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 269).

[6] ESPIR, Barbara Cabrera; STEINBERG, Daniel Fideles [et all]Criptoativos – Estudos Regulatórios e Tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 110/113.

[7] (GOMES, Daniel de Paiva; GOMES, Eduardo de Paiva [et all]. Criptoativos – Estudos Regulatórios e Tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 66).

[8] COSTA, Isac [et all]. Criptoativos, Tokenização, Blockchain e Metaverso: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 645.

[9] JUNIOR, Agostinho Gomes Cascardo; PERAZZONI, Franco [et all]Criptoativos, Tokenização, Blockchain e Metaverso: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 1572/1573.

[10] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=100592. Acessado em: 25/07/2023em: 25/07/2023

[11] ARRUDA, Carolina; FONSECA, Alessandra [et all]. Criptoativos, Tokenização, Blockchain e Metaverso: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 1066.

[12] Vide Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN e Deliberações nºs 821/2019; 826/2019; 828/2019; 830/2019; 831/2019; 837/2019; 839/2019.

[13] Artigo 3º, incisos I e II, do Decreto nº 11.563/2023.

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